
Viramos duas mães, e agora?
Ser mulher na realidade brasileira não é fácil, não é mesmo? São medos sobre segurança, empregabilidade, respeito. Imagine somar a essa camada aspectos de raça, religião e sexualidade. Os desafios se tornam cada vez maiores. Eu, como mulher, nordestina, bissexual e mãe por adoção tardia e interracial sou atravessada diariamente por esses fatores. Mas o que falar sobre o psiquismo desta e tantas outras mulheres?
Pensando no contexto da dupla maternidade pela adoção, ou seja, quando duas mulheres decidem virar mães, constituindo um novo formato de família, várias camadas da cebola se encontram. Desde a mulher individualmente que carrega consigo todas suas experiências de vida, ao casal que passa a constituir uma reta ou ponte de trocas. Para, em seguida, se tornar um triângulo, quadrado ou outras formas geométricas com a chegada de outros seres, filhos e filhas à esta relação. Por isso, para iniciarmos essa reflexão muito particular e íntima que partilho abaixo, sugiro pensarmos em camadas de cebola.
Ser mulher
Sair do estágio menina, garota e se transformar em uma mulher leva um tempo danado. São alterações corporais, hormonais, cabelos que se transformam e, para além disso, vamos nos transformando psiquicamente para entender quem somos e como desejamos nos apresentar para o mundo. Na verdade, não existe jeito certo de ser mulher ou demonstrar seu padrão de feminilidade, apesar de todas as pressões e atravessamentos sociais. Ao longo do amadurecimento vamos percebendo que ser mulher é viver uma revolução constante, interna e externamente. É um eterno florescer, doloroso, lento e gradativo.
Um casal de mulheres
A experiência da paixão e amor podem ser muito individuais, mas uma coisa é certa, o rebuliço no estômago estará presente nos estágios iniciais. Dependendo da sua criação, local de nascimento ou até mesmo os filmes que você assistiu vai sendo criado uma espécie de projeção de como o amor e as relações conjugais devem ser estabelecidas. Geralmente, somos bombardeados por relações monogâmicas (casais compostos por duas pessoas) e heteronormativas (de sexos diferentes). No meu caso, quando me vi apaixonada por outra mulher foi algo leve. Me entreguei aquela vivência e fui eu mesma, por inteiro. Que delícia ser a gente, não é mesmo?
Processo adotivo
As regras para este processo poderão ser diferentes de acordo com a vara da infância do seu município. Mas basicamente você precisará unir vários documentos, realizar um pré cadastro e aguardar o processo de habilitação psicossocial. Todo esse trâmite pode demorar mais ou menos tempo, de acordo com a instância jurídica da sua localidade. Em todo esse caminho lembre-se, vocês estão juntas construindo um parto às pressas. Lidarão com seus maiores preconceitos, mas aprenderão a dar todo o amor do mundo quando a ligação ocorrer. Por aqui, levamos um pouco mais de um ano para sermos habilitadas, ficando apenas uma semana oficialmente na fila. Haja coração!
Criar uma criança que chegou à uma família substituta por meio da adoção é compreender que o seu ponto de partida será sempre diferente. Mesmo que muito bebê as experiências e atravessamentos emocionais vão requerer um preparo significativamente grande dos cuidadores. Por aqui, buscamos aprender muito sobre puerpério adotivo (eu confundia os nomes dos pacientes e meu próprio corpo mudou muito), comportamentos esperados (birras e agressividade podem estar comunicando outras coisas), direito à verdade e sigilo sobre sua história, enfim, são tantas as temáticas que não acabarão tão cedo.
Dupla maternidade
Assim como outros casais, a parentalidade não é fácil. Por aqui, nossos meninos chegaram com dois e três anos e, do dia para noite, tivemos que aprender sofre fralda, escola, rotinas e toda uma leva de informações que não faziam parte do nosso mundo. A maternidade é atravessamento, lidar com seus dragões internos, ressignificar a própria infância. Na dupla maternidade não seria diferente. Aqui duas mulheres, com projeções e expectativas muito individuais vão precisar, juntas, aprender a dialogar sobre a construção daquela família (como todas as outras não é mesmo?). O que muda para as demais são as barreiras e letramentos que serão necessários, na rua, na escola e na própria família. Sua criança precisará estar preparada para lidar com o estranhamento. Na dupla maternidade também haverá a necessidade de relembrar o cuidado com a parceira, afinal, antes de mães vocês são mulheres, namoradas, companheiras, o que decidirem juntas. E, o espaço para o desejo e afeto precisará estar presente para sustentar essa relação.
O processo adotivo apesar de gerar um turbilhão de sensações em uma espécie de montanha russa foi uma das melhores decisões que tive na minha vida. O amor é eterno e retribuído dia após dia!
Finalizo, trazendo que todas as experiências são únicas e válidas. Não há caminho completamente certo ou completamente errado, afinal a vida humana é pura relatividade.
Espero que essas palavras íntimas e sinceras acolham outras vozes pelo caminho.
Com afeto,
Ingrid Betty