Notas sobre a (não) maternidade. Ser ou não ser, eis a questão?

A dúvida de Hamlet, na obra de William Shakespeare, atravessa os séculos e se mantém viva em diferentes dilemas da existência humana. Na psicanálise, essa indagação se torna o dilema dos neuróticos: presos entre o desejo e a interdição, entre o que querem e o que acreditam ser esperado deles. O sujeito neurótico hesita, adia, se angustia diante da impossibilidade de uma resposta definitiva. Entre os muitos dilemas que atravessam essa condição, um se impõe com força sobre as mulheres: ser mãe ou não ser?

Vera Iaconelli, em Manifesto Antimaternalista, nos alerta que o amor materno não é uma dádiva, mas um mandamento. Ou seja, o amor materno não é algo natural, instintivo e espontâneo, mas uma construção social e cultural, algo que a sociedade exige das mulheres, quase como uma obrigação ou um dever.

E sabemos muito bem, como mulheres, o quanto crescemos ouvindo que a maternidade é a expressão máxima do feminino, como se não fosse possível ser mulher sem passar por essa experiência.

A maternidade sempre foi tratada como o desfecho natural de uma vida feminina bem-sucedida. Ninguém pergunta a um homem se ele quer ser pai como se essa decisão fosse definir sua existência. Mas, para uma mulher, ah, a resposta pode mudar tudo: sua identidade, sua aceitação social, seu lugar no mundo. Já repararam?

Pesquisas indicam que as mulheres que decidem não ter filhos ainda enfrentam um grande estigma social. Segundo um estudo publicado na Revista Psicologia e Sociedade, a recusa à maternidade muitas vezes é vista como uma transgressão, desafiando o que se espera das mulheres dentro do ciclo de vida tradicional. Mais do que uma escolha individual, essa decisão frequentemente se torna alvo de questionamentos e pressões sociais, refletindo a resistência em aceitar diferentes formas de existência feminina para além da maternidade.

Mas, e se essa escolha não for completamente consciente?

Para a psicanálise, o desejo não está plenamente acessível ao sujeito. Sigmund Freud já nos ensinava que grande parte das nossas decisões são atravessadas pelo inconsciente, revelando um desejo que nem sempre nos é claro, além disso, somos atravessados pelas expectativas sociais e familiares que nos constituem para além do que imaginamos escolher racionalmente. Assim, a maternidade — ou a recusa dela — pode ser uma escolha inconsciente, determinada por histórias, experiências e inscrições subjetivas que operam para além da vontade consciente da mulher.  Por isso, a maternidade não deveria ser vista como uma obrigação, mas como uma implicação subjetiva. Ou seja, a maternidade (ou sua recusa) não se reduz a um ato racional de dizer “sim” ou “não”, mas carrega a história inconsciente do sujeito, atravessada por desejos, medos e identificações. Nada simples, não?

O mundo continua ávido por respostas definitivas e se assusta menos quando conseguimos separar o bem do mal, o certo do errado. Mas a vida envolve uma dose de risco e poucas certezas absolutas, por isso escolher ser mãe ou não é tão desafiador.

Muitas mulheres sonharam com esse momento e se arrependeram. Outras, sonharam e vivem uma maternidade satisfatória. Algumas nunca desejaram e se surpreenderam positivamente com a experiência. Outras, sem desejar, simplesmente realizam a desafiadora missão de criar uma criança. Há também aquelas que seguem sem esse desejo e as que desejam, mas são impedidas pela biologia. Com certeza, ainda existem outros cenários não citados.

A maternidade, quando idealizada, vira um delírio coletivo: ou é um conto de fadas ou um fardo inevitável. Mas, entre esses extremos, há tantos caminhos possíveis. Vera Iaconelli provoca belamente ao dizer que a maternidade não pode ser uma prisão e que a recusa à maternidade não pode ser um crime.

É interessante imaginar futuros possíveis. Em um deles, a maternidade se faz presente, trazendo consigo um novo jeito de amar, mas também o cansaço, a sobrecarga e a necessidade constante de reinvenção. Em outro, a vida segue sem filhos, preenchida por outros afetos, amores, projetos, outras formas de nutrir e ser nutrida. Nenhum desses cenários parece menos verdadeiro.

O que existe, então, é a possibilidade de transbordar para além das escolhas definidas por convenções e expectativas externas. A maternidade, quando desejada, pode ser um território de descoberta, de construção de vínculos profundos, mas também de exaustão e de embates entre identidade e função. Há um amor que atravessa, mas também há dias em que a presença parece esmagadora, em que o corpo e a mente anseiam por espaço, por silêncio, por um tempo que já não pertence apenas a si mesma.

Por outro lado, há a experiência de viver sem filhos. O afeto se espalha por diferentes vínculos, a dedicação encontra morada em paixões e projetos, o cuidado se manifesta em gestos que não seguem o modelo tradicional. Há mais tempo para si, para redescobrir o próprio ritmo, para habitar o mundo sem a estrutura fixa da maternidade, mas com a mesma capacidade de amar, de se transformar, de ser necessária para alguém.

Cada caminho carrega em si tanto a completude quanto a falta. Em qualquer escolha, há ganhos e renúncias. Talvez a imagem de uma idosa bem-sucedida, sem filhos, cercada de amigos e explorando o mundo, desperte a ideia de que uma vida sem filhos foi uma escolha acertada. Mas, diante de alguém que envelheceu na solidão, sem encontrar outro sentido para sua velhice, talvez surja a dúvida — ou até o alívio — por ter seguido um caminho diferente.

Da mesma forma, ao observar uma mãe idosa sendo cuidada com carinho por seus filhos, pode surgir um arrependimento silencioso em quem não os teve. Mas, ao ver outra, esquecida e desamparada por aqueles que um dia gerou, talvez a ausência dessa experiência se transforme em gratidão. O futuro, imprevisível como é, não oferece garantias — apenas possibilidades que, em qualquer cenário, se entrelaçam com escolhas, consequências e a maneira singular com que cada um constrói o próprio sentido.

O que você topa perder? O que você consegue negociar? Qual modelo de maternidade você tem? Você sabe que pode adotar outro e construir o seu? Talvez essas sejam perguntas norteadoras.

Mas, sabe, fico pensando que o que realmente importa não é a decisão em si, mas a liberdade de fazê-la sem medo de que um caminho anule o outro. Afinal, mais do que uma única narrativa possível, viver é estar sempre em trânsito entre desejos, afetos e reinvenções.

Nada é mais revolucionário para as mulheres do que poder fazer escolhas guiadas pelo próprio desejo — e reconhecendo, inclusive, que esse desejo nem sempre é consciente.

Até a próxima!
Com carinho,
Letícia.